Na sexta-feira passada, dia 18, ao final da tarde, ao chegar a casa, não fui direitinho à minha porta. Fui, em vez disso, espreitar à porta do barbeiro. Boa! O próprio barbeiro estava sentado na cadeira onde os clientes se sentam, a ler o jornal.
Entrei imediatamente, mas ele, em contrapartida, não reagiu imediatamente. Fez-me mesmo pensar que não tinha ficado agradado com a minha chegada ali. É a segunda vez que ele me vai cortar o cabelo, está ali há pouco tempo, conheço-o ainda mal. Ora bem, eu queria dar um jeito ao cabelo, ando há 15 dias para o fazer, o jovem profissional de barbearia que tivesse paciência. Até fechar, tinha tempo para me atender e atender mais dois ou três clientes; ou mais, se quiserem cortes simples como eu sempre quero.
Fui controlando o jovem brasileiro pelos cantos dos olhos. Sentia que o pente coçava a minha cabeça com mais força que o costume; os gestos de puxar os cabelos com o pente eram irregulares. Deixou cair ao chão esse utensílio fundamental 2 ou 3 vezes. Mau!... Ao fim de algum tempo de começar a cobrir de cabelos o grande lençol com que os barbeiros habitualmente tapam ombros, peito e braços dos clientes, o rapaz parecia ter-se definitivamente entregado à sua tarefa, com o cuidado que os clientes sempre gostam de ver em quem cruza tesouras e lâminas junto dos seus escalpes, orelhas e pescoços.
Achei prudente não entabular conversa, o rapaz, hoje, não parecia desejoso de conversas que teria de suportar respeitosamente.
Quando acabou, puxou do habitual espelho, passou-mo pela nuca, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda e sem esperar que eu lhe respondesse à tradicional pergunta "- Está bem assim?...", rematou com um comentário cheio de significados: "- Hoje tirei-lhe 10 anos, o senhor hoje vai daqui com menos 10 anos!..." O moço deixou-me penteado com o cabelo todo para trás. Já da outra vez, eu disse-lhe que não me penteava assim, era com risco ao lado, do lado esquerdo. Resolvi não lhe dizer nada, depois de tudo o que aconteceu, de certeza que a conversa azedaria. Despachei o ritual maquinal do espelho com um vago "Sim... sim..."
Dois dos significados principais da tirada do jovem imigrante brasileiro:
- Significado n.º 1: Ele viu-me como velho! Sim, viu-me com uma idade que o fez pensar que eu já estou naqueles grupos etários que gostam de parecer mais novos. O rapaz, realmente, hoje não está nos dias dele! Eu não lhe tinha dito fosse o que fosse que tivesse a ver com idades ou temas afins. Se quis ser simpático comigo, teve azar, de mais a mais, depois da receção quase hostil que me fez quando entrei - legitimanente e educadamente - no seu espaço de trabalho.
- Significado n.º 2: Ele tinha qualquer coisinha a remoer-lhe na consciência, daí a necessidade de, com este comentário, estar a dizer-me, de forma implícita, que tinha feito um bom trabalho, por isso eu só tinha razões para ficar contente com ele.
"- 10 anos?... O senhor está a dizer-me que tirou-me 10 anos da cara? E só agora é que me diz isso?..."
Realmente, o rapaz não estava à espera que eu reagisse assim, parou automaticamente de sacudir o lençol, cobriu a cara com uma expectante preocupação e perguntou-me:
"- O senhor queria que eu tivesse dito antes?... O senhor acha que eu fiz alguma coisa de errado?..."
"- Errado, quer dizer... - disse-lhe eu, a tomar a liderança da conversa - Errado, errado, não está... Mas isso não me chega, 10 não é nada...
O rapaz já estava de olhos quase esbugalhados à espera de ouvir o que eu ainda tinha para dizer.
"- Se eu soubesse que o senhor era capaz de fazer essas coisas, quando me perguntou como é que eu queria o corte, eu, logo nessa altura, tinha-lhe respondido que queria que me tirasse 40 anos. Isso sim, isso é que me punha a sair bem satisfeito daqui hoje."
O rapaz contraiu os músculos da cara daquela forma em que ficamos a saber que a pessoa já não está a perceber nada. Definitivamente, ele tinha perdido o controlo da conversa. Pronto, era hora de eu ser manso e magnânimo com ele, e fechar a conversa. Antecipei a satisfação do encontro do dia seguinte, enchi-me de afetos positivos e imaginei-o longe da sua família, longe dos seus afetos positivos. Sorri enigmaticamente para o rapaz e fiz um esgar de maneira a que ele percebesse que eu lhe ia dizer qualquer coisas. Ele estava feito quase estátua, de lençol na mão, caído, na expetativa; os olhos dele seguiam os meus. Levantei-me da cadeira, sacudi dos ombros os cabelos que pensamos que estão sempre lá (mesmo que os ombros tivessem estado cobertos pelo longo lençol), cheguei-me ao pé dele e pus-lhe amigavelmente a mão sobre o ombro dele:
- Meu caro amigo, amanhã vou ter um encontro com amigos que não vejo há 40 anos! Se eu soubesse que o senhor era capaz de fazer milagres desses, tinha-lhe pedido que me tirasse os anos que era preciso para que os meus amigos me reconhecessem logo, sem problemas, tal qual eu era quando deixámos de nos ver. Está a ver? Podia ter feito um trabalho fantástico comigo e ficou-se só pelos 10 anos... É capaz de ser bom, mas para mim não dá, eu precisava de mais 30!
O rapaz continuava com ar de quem não sabe bem que chão estava a pisar, não sabia se eu estava satisfeito ou aborrecido. Resolvi chegar ao fim da conversa. Era hora de aliviá-lo:
"- Continue a treinar, está no bom caminho, quando o senhor for capaz de tirar 40 anos e não apenas 10, nem sabe o senhor a quantidade de fregueses que eu sou capaz de lhe arranjar!... Eu depois venho cá dizer-lhe se os meus amigos me reconheceram ou não."
Finalmente o rapaz soltou uma gargalhada.
- "Muito agradecido, senhor, eu vou tentar, pode acreditar!"
E aqui está, quem não gostou de me ver chegar ficou bem contente antes de me ver partir. Antes de me juntar no dia a seguir com os meus v*lhos amigos, e por causa deles, terei ajudado um jovem afastado dos seus familiares e amigos a sentir-se um pouco mais aconchegado nos seus afetos. Paguei-lhe os 9 euros do costume com os 10 euros do costume. Estendi-lhe a mão, e desejei-lhe um bom fim de semana. Desejou-me o mesmo. Que diferença entre o sorriso dele à minha entrada e à minha saída! Graças à minha malta da E.I.C.A.!
Sem comentários:
Enviar um comentário